
Os editais lançados pela Secretaria Municipal de Cultura de Dias D’Ávila para execução dos recursos da Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) levantam suspeitas de uso indevido de verbas federais e possível desvio de finalidade.
Documentos analisados pelo É Notícias e pareceres de especialistas apontam que o município pode ter transformado o fomento cultural — que deveria beneficiar artistas, grupos e coletivos — em um modelo semelhante a uma “licitação disfarçada”, concentrando recursos e simulando processos de contratação de serviços.
O Edital nº 04/2025 – “Capacita Cultura” é o mais questionado. De acordo com o texto oficial, o objetivo seria “promover ações formativas e de qualificação na área cultural, voltadas à gestão, produção e empreendedorismo criativo”.
O documento, no entanto, destina R$ 27.280,63 a uma única empresa privada, sob o formato de termo de execução cultural, para ministrar oficinas e capacitações. Embora a PNAB permita a participação de pessoas jurídicas, juristas afirmam que o texto utiliza recursos federais para finalidades que deveriam ser custeadas pelo próprio município, como ações de capacitação e formação continuada na área de cultura.
Segundo especialistas, capacitação e formação de agentes culturais são deveres permanentes do poder público e devem ser executados com verbas orçamentárias próprias, não com recursos de fomento federal voltados à sociedade civil.
“O município não pode usar o dinheiro do fomento, que é destinado aos fazedores de cultura, para realizar cursos ou programas que fazem parte de suas obrigações administrativas. Isso desvirtua completamente a finalidade da PNAB”, explica o advogado e pesquisador em gestão cultural Lucas Freitas.
O edital exige plano de trabalho, metas, produtos e relatórios de execução, com monitoramento direto pela Secretaria de Cultura — características típicas de um contrato administrativo. Além disso, prevê vigência, cláusulas de prorrogação e obrigações contratuais, o que reforça o formato de contratação indireta de serviço público.
Na análise de juristas consultados, o “Capacita Cultura” pode apresentar irregularidade grave, pois teria usado recursos federais destinados a artistas e grupos locais para executar atividades de interesse interno da própria Secretaria, o que contrariaria o princípio da descentralização e o objetivo social da PNAB.
Outro documento que levanta questionamentos é o Edital nº 05/2025 – “Influencer Digital Cultural”, cujo objetivo declarado é “selecionar influenciadores digitais para divulgação de ações culturais e fortalecimento da comunicação institucional sobre as políticas culturais do município”.
O valor previsto é de R$ 27 mil, a ser concedido a apenas um participante selecionado por critérios de alcance e engajamento em redes sociais.
De acordo com especialistas, o edital utiliza verba de fomento federal para financiar ações de publicidade e comunicação institucional da Prefeitura, o que também configura desvio de finalidade.
“A PNAB foi criada para apoiar diretamente artistas, coletivos e grupos culturais. Usar esse recurso para promover comunicação de governo, ainda que sob o pretexto de divulgação cultural, afronta o princípio da finalidade pública e o caráter descentralizador da lei”, avalia a advogada e consultora em políticas culturais Rita Mendes.
O valor do “Influencer Digital” é superior ao orçamento de editais como o Festival Voz Estudantil, que distribuiu R$ 21 mil entre dezenas de jovens artistas locais — o que reforça o caráter concentrador das ações.
Além da formatação empresarial, ambos os editais exigem CND municipal, conta bancária específica, currículo e portfólio técnico, requisitos que acabam restringindo a participação de coletivos informais e artistas independentes — justamente o público prioritário da PNAB.
“O fomento não é para quem tem estrutura contábil e jurídica consolidada. É para fortalecer a base cultural, que normalmente não tem CNPJ nem assessoria fiscal”, acrescenta a produtora cultural Ana Paula Santana.
Outro ponto que gera preocupação é o prazo de inscrição: apenas cinco dias (de 17 a 21 de outubro de 2025), com entrega presencial de documentos em horário comercial. Conforme o Diário Oficial de 24 de outubro, apenas um inscrito foi habilitado em cada edital — situação que levanta suspeitas de baixa concorrência e possível direcionamento.
A comissão de seleção também é alvo de críticas. Os documentos indicam que a avaliação será feita apenas por servidores municipais, sem participação do Conselho Municipal de Cultura ou de representantes da sociedade civil. Tal formato contraria o artigo 8º da Lei Aldir Blanc II (Lei 14.399/2022), que assegura participação social e transparência nos processos de fomento cultural.
Esta não é a primeira vez que a Secretaria de Cultura de Dias D’Ávila é citada em apurações. Em agosto de 2025, o É Notícias revelou com exclusividade que o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) apura possíveis irregularidades na aplicação de R$ 101.619,88 oriundos da Lei Paulo Gustavo, em um caso que envolveria servidores e produtores locais.
A investigação examina indícios de conflito de interesses, movimentação financeira atípica e possível uso indevido de recursos públicos. À época, a Prefeitura informou que havia instaurado procedimento interno e que tomaria as medidas cabíveis caso as suspeitas fossem confirmadas.
O processo segue em análise pelo MP-BA e pela Polícia Civil da Bahia, que avaliam eventual enquadramento nas esferas de peculato, improbidade administrativa ou obstrução de justiça.
As Portarias nº 002/2025 e nº 003/2025, que instituíram as comissões de avaliação dos novos editais, não divulgaram os nomes dos membros nem os critérios de pontuação — o que, segundo juristas, descumpre o princípio da publicidade previsto na Lei 14.903/2024 e no Decreto 11.740/2023.
Especialistas alertam que, se confirmadas as falhas, a gestão poderá ser obrigada a devolver recursos, enfrentar glosas e ter novos repasses suspensos, além de responder por improbidade administrativa.
Na esfera civil, órgãos como o Tribunal de Contas dos Municípios (TCM-BA), o Ministério Público Federal (MPF) e a Advocacia-Geral da União (AGU) podem determinar ressarcimento integral dos valores, bloqueio de bens e responsabilização administrativa.
Já na esfera penal, os casos podem ser analisados pela Justiça Federal e pelo MPF por supostos crimes como peculato, fraude em processo público e falsidade ideológica, com penas que podem incluir reclusão e perda de função pública.
A legislação federal também prevê responsabilidade solidária dos beneficiários, o que significa que quem recebe recursos federais de fomento pode responder conjuntamente se comprovado que se beneficiou de forma irregular.
Na prática, os editais analisados acabam substituindo o fomento cultural — voltado ao incentivo direto a artistas, grupos e coletivos — por contratações pontuais e concentradas, sem retorno cultural proporcional.
A ausência de pluralidade, de contrapartidas sociais e de participação popular fragiliza o objetivo da PNAB de garantir acesso democrático, diversidade cultural e fortalecimento das expressões locais.
Os pedidos de esclarecimento foram encaminhados à Secretaria Municipal de Cultura e à Prefeitura de Dias D’Ávila, mas até o fechamento desta edição não houve resposta oficial. O espaço segue aberto para manifestação das partes citadas, conforme prevê o direito de resposta e o compromisso do É Notícias com a transparência e o contraditório.