
O barco é de luxo, mas quem está se afogando é Salvador
Pois bem, minha gente. Enquanto Salvador enfrentava mais uma semana de chuvas que pareciam ter sido encomendadas por São Pedro no modo descarga total — com ruas virando rios, carros virando botes e moradores virando atletas aquáticos involuntários — a Prefeitura decidiu investir R$ 800 mil num evento para milionários exibirem lanchas reluzentes.
Sim. Você não leu errado. Oito. Centos. Mil. Pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Emprego e Renda — aquela mesma que deveria estar olhando para o desemprego, para o empreendedor ferrado, para a renda do povo — mas, aparentemente, decidiu que o povo precisa mesmo é de uma lancha de R$ 5 milhões para chamar de sua. Só falta liberar o crediário em 720 vezes no carnê da Coelba.
Enquanto isso, a cidade inteira vivia um episódio ao vivo de “Lava a Jato: versão Salvador”, com água entrando nas casas, nos ônibus, nos elevadores e quase nos sonhos. Mas, pelo visto, na cabeça da Prefeitura, a prioridade é clara: se é para afundar, que afunde todo mundo olhando para uma lancha bonita.
O tal evento reuniu fabricantes de lanchas, jet skis, motores e brinquedos que só quem tem CPF blindado pode comprar. E quem pagou para esse evento aquático ser montado? Isso mesmo: o contribuinte, que nem lancha tem e, com sorte, tem um guarda-chuva que já virou escultura pós-moderna no vento.
E o mais triste — ou mais engraçado, depende do humor da desgraça — é que:
As ruas alagaram;
As encostas cederam;
Os bueiros voltaram a trabalhar no sistema home office (já que na rua não dá);
A população ficou isolada;
E a cidade, mais uma vez, provou estar ZERO preparada para as mudanças climáticas.
Mas a Prefeitura, num esforço surpreendente de criatividade administrativa, concluiu que onde falta drenagem, sobra dinheiro para lancha.
Salvar Salvador das enchentes?
Preparar a cidade para eventos extremos que só vão piorar?
Reforçar drenagem, galerias, encostas, canais?
Investir em monitoramento, alerta e mapeamento de áreas vulneráveis?
Que nada!
O que temos é a SEMDEC patrocinando festa náutica. Talvez porque, na cabeça deles, se a cidade virar Veneza, melhor já ter as lanchas prontas.
Enquanto isso, os investimentos em adaptação climática continuam na estaca zero — ou melhor, no subsolo, junto com os bueiros entupidos.
Eu fico me perguntando: que “emprego” e “renda” a Prefeitura acha que nasce de um evento desses? Vai gerar quantos postos de trabalho? Dois marinheiros e um rapaz para polir casco?
Enquanto isso, o trabalhador soteropolitano estava preso dentro do ônibus alagado em Cajazeiras, vendo o nível da água subir e se perguntando se já conta como transporte aquaviário.
E pior: a Prefeitura não esconde, não nega e ainda posa sorridente ao lado das lanchas, como se aquilo fosse um marco de desenvolvimento da cidade. O marco, de fato, existe: um marco zero da prioridade ambiental.
Quando uma cidade insiste em ignorar a crise climática e continua andando para trás, admito: fica difícil até fazer humor. Mas como isso aqui é uma coluna — não um atestado de óbito socioambiental — sigo firme:
Que tal pegar esses R$ 800 mil e limpar galerias antes da estação das chuvas?
Que tal investir em contenção de encostas para evitar tragédias anunciadas?
Que tal montar um plano municipal sério de adaptação climática, em vez de um catálogo de lancha importada?
Que tal a Prefeitura de Salvador se preocupar com o povo que pega ônibus, e não com o povo que pega marola?
Mas, pelo visto, Salvador vive aquela filosofia de barquinho de papel: se molhar, afunda. E está afundando.
A imagem é perfeita para fechar esta coluna: moradores ilhados, com água no joelho; carros flutuando em avenidas que viraram represas; negócios destruídos pela chuva… e, no outro canto da cidade, um evento luxuoso com lanchas brilhando sob refletores.
É o retrato nu e cru da desigualdade ambiental:
a cidade afunda na lama enquanto a elite flutua no privilégio — patrocinada pela própria Prefeitura.
E quando vier a próxima chuva forte, porque ela certamente virá, eu só espero que o prefeito não apareça dizendo que “ninguém esperava esse volume de água”. Afinal, se colocou dinheiro público em lancha, não custa estudar um pouquinho o clima.
E quem sabe, um dia, Salvador não terá que aprender a nadar à força.
Até lá, sigo aqui: com minha caneta, meu humor ácido e meu guarda-chuva torto.
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