Prepare o estômago, caro leitor, porque o que está acontecendo no Cerrado baiano não é para os fracos. Na Bahia, desmatar milhares de hectares de vegetação nativa virou política de governo, e das mais “legais” possíveis. Sim, legais, com aspas e tudo. É o desmatamento institucionalizado, carimbado pelo INEMA, respaldado por um decreto estadual que mais parece ter sido escrito em uma mesa de jantar com o agronegócio do que num gabinete técnico ambiental.
Desde o Decreto 18.218/2018, assinado com pompa e circunstância, o Estado da Bahia decidiu que só haverá necessidade de Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para desmatamentos no Cerrado e Caatinga que ultrapassem inacreditáveis 10 mil hectares. Sabe o que isso significa? Que o fazendeiro que quiser suprimir 9.999 hectares de vegetação nativa, mais de 9 mil campos de futebol, pode fazer isso sem qualquer análise de viabilidade ambiental. É só pedir a tal ASV, pagar uma taxa simbólica e correr para o trator.
E o INEMA? Bem, esse virou um cartório de liberação de desmatamento. Basta uma passada de olhos por portarias recentes no Diário Oficial do Estado para perceber o tamanho da tragédia:
A Fazenda Prata, em Jaborandi, recebeu autorização para suprimir 2.800 hectares de Cerrado para agricultura irrigada. Sem EIA/RIMA. Sem audiência pública. Sem vergonha.
A Light of Stars, em Correntina (nome sugestivo, não?), teve permissão para devastar 2.695 hectares, também com um simples despacho de ASV.
A empresa FRS Gestão, também em Jaborandi, vai desmatar mais 1.386 hectares. Tudo limpinho, tudo “legal”.
E pasmem: há casos como o da empresa Sementes Fortuna S.A., autorizada a suprimir 4.667 hectares, num combo que inclui agricultura e pecuária. Um verdadeiro agronegócio do apocalipse.
Todos esses empreendimentos se aproveitam da burla escancarada promovida pelo decreto. A lógica é perversa: fatiar áreas maiores em “parcelinhas” de até 10 mil hectares para evitar a exigência de estudos ambientais. E o pior: o INEMA, que deveria proteger o meio ambiente, age como se fosse uma “clínica de aborto do Cerrado”, autorizando o assassinato de biomas inteiros sob a alcunha de desenvolvimento econômico.
O Ministério Público foi acionado. Sim, existe uma denúncia formal, e nela mostramos que essa legislação é inconstitucional, pois fere os princípios da prevenção, precaução e equilíbrio ecológico previstos na Política Nacional do Meio Ambiente e na Constituição Federal (art. 225). Há um flagrante tratamento desigual entre biomas: enquanto a Mata Atlântica exige EIA/RIMA para áreas acima de 500 hectares, o Cerrado e a Caatinga ficam largados à própria sorte até os 10 mil. Isso é ciência? É justiça? É governança?
Claro que não. Isso é o “Agro é Tech” traduzido como “Agro é Tcheco”: toca fogo, planta soja e exporta lucro para Suíça. Enquanto isso, comunidades tradicionais perdem água, biodiversidade some e o clima regional vira um inferno de estiagem e queimadas. Tudo com benção governamental.
Senhor Governador Jerônimo Rodrigues, Senhor Secretário de Meio Ambiente Eduardo Sodré, é hora de rever urgentemente esse decreto. É hora de parar de tratar o Cerrado como quintal da soja e passar a reconhecê-lo como berço da biodiversidade, nascedouro de rios, refúgio de espécies e território de povos tradicionais.
Esse nosso pedido de revisão do famigerado Decreto 18.218/2018 não surge isolado. Ele ganha ainda mais urgência no contexto sombrio da aprovação, no Congresso Nacional, do PL 2.159/2021, o infame “PL da Devastação”. Se esse projeto de lei for sancionado, será a pá de cal sobre o que restou do licenciamento ambiental no Brasil. Estamos diante de uma engrenagem bem azeitada entre decretos estaduais permissivos e projetos federais destrutivos, montada para transformar nossos biomas em pasto, lucro e deserto. É a boiada passando com escolta legislativa e omissão institucional. E quem quiser salvar o Cerrado que grite agora, antes que o trator passe por cima da nossa Constituição.
E a você, leitor, cabe a pressão. O Cerrado não pode ser triturado por trator e decreto. Não em nosso nome.
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