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Cuidado, substantivo e adjetivo (o texto)

A poesia como resistência: uma reflexão sobre o cuidado, a empatia e o papel da arte na construção de uma sociedade mais justa.

Por: Everton Carneiro
29/01/2025 às 09h08 Atualizada em 29/01/2025 às 11h35
Cuidado, substantivo e adjetivo (o texto)
Foto: Reprodução

Recentemente publiquei no Whataspp um poema intitulado “Cuidado, substantivo e adjetivo”. Eis que em um grupo, alguém me respondeu de forma onde falta dignidade e sobra agressividade: “O que você deseja dizer com essa poesia? Lá vem mais um defensor de Fernanda sem Torre, esse do tipo que combate a ditadura e diz defender a democracia. Essa historinha do cuidado é papo de esquerdopata, pois a vida é uma competição, o mundo se divide entre os vencedores e perdedores. Desta forma o que existe é a força do mérito, que se chama meritocracia. Deve-se abandonar essa conversa fiada de gênero e outros quesitos de apoio às minorias. Nada de homossexual, negro, mulher, índio e etc. Nada desse mimimi de cuidado, pois o que a juventude e toda o povo precisa é estar na frente, é ser vencedor e não cuidador, pois este é um perdedor. Não precisamos de Lei Rouanet, como essa Fernanda, Lei Maria da Penha ou ainda Lei de Cotas. Tudo isso é uma vergonha. Pare com essa coisa de fazer e publicar poesia e dizer para sermos cuidadores, pois poesia não contribui em nada com o trabalho e o crescimento do Brasil e cuidado é coisa típica desses esquerdopatas, tipo você.”

          A resposta ao comentário mencionado exige uma análise cuidadosa que aborde tanto o tom agressivo quanto as ideias apresentadas. Primeiramente, é importante ressaltar que a poesia tem, desde sempre, sido um instrumento poderoso para questionar, refletir e humanizar as relações humanas. O poema “Cuidado, substantivo e adjetivo” nitidamente convida à reflexão sobre a importância do cuidado como uma virtude ética e uma prática essencial para a convivência social. Negar a relevância da poesia, como fez o interlocutor, revela uma visão limitada que reduz as expressões artísticas e culturais a um suposto utilitarismo econômico, ignorando o papel transformador que a arte desempenha na construção de uma sociedade mais consciente e empática.

          Além disso, a crítica ao "cuidado" e às políticas de inclusão, como as Leis Maria da Penha e de Cotas, reflete uma compreensão restritiva de meritocracia, que desconsidera as desigualdades estruturais históricas. O mérito, para ser justo, deve ser avaliado em condições de igualdade de oportunidades, algo que políticas afirmativas buscam corrigir. Desprezar tais iniciativas como "mimimi" não apenas perpetua essas desigualdades, mas também desvaloriza o princípio básico de solidariedade, que é fundamental em qualquer sociedade que almeje coesão e justiça. A competição exaltada pelo interlocutor, sem contrapesos éticos como o cuidado e o apoio mútuo, desumaniza as relações e promove uma cultura de exclusão.

          Desta forma, o desdém pela diversidade e pelos direitos das minorias revela uma visão retrógrada e insensível que ignora as contribuições valiosas desses grupos para a sociedade. Homens e mulheres, brancos e negros, heterossexuais e LGBTQIA+, indígenas e demais grupos historicamente marginalizados são partes constitutivas do tecido social e cultural do Brasil. A defesa do cuidado, da inclusão e da diversidade não é um "papo de esquerdopata", mas uma exigência ética e humanitária que transcende divisões ideológicas. Poesias são fundamentais para promover diálogos necessários e para iluminar caminhos mais justos, lembrando-nos de que o verdadeiro progresso de uma sociedade se mede não apenas pelo sucesso individual, mas pela dignidade com que ela trata todos os seus membros.

          Não ficarei aqui me estendendo e comentando/respondendo a cada minudência dessa postagem, pois vou me dispor a explicar o poema, algo que acredito que o poeta não é obrigado a fazer, entretanto vamos lá, numa hermenêutica do autor.

          O conceito de cuidado revela-se multifacetado, envolvendo dimensões tanto substantivas quanto adjetivas. O cuidado é uma existência delicada, dotada de poder transformador, que atua no cerne da vida humana e nas relações interpessoais. Este texto tem busca discutir o papel do cuidado na existência humana, articulando ideias com referências teóricas pertinentes. A palavra cuidado, na sua dimensão de substantivo, representa uma ideia ou conceito que exprime a atenção, o zelo e a responsabilidade voltados para algo ou alguém. Como substantivo, o cuidado é compreendido como uma prática ou atitude fundamental na relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo. Ele engloba ações concretas e simbólicas que visam proteger, preservar e promover o bem-estar, seja físico, emocional ou espiritual.

          Na filosofia existencialista, especialmente em Martin Heidegger (Ser e Tempo), o cuidado é identificado como a estrutura fundamental da existência humana, um modo de ser que define como o ser humano se relaciona com o mundo. Nesse sentido, o cuidado substantivo assume uma importância ontológica, pois representa o movimento pelo qual o ser se envolve com aquilo que lhe é essencial.

          Na sua dimensão de adjetivo, a palavra cuidado qualifica e atribui características específicas a algo ou alguém, destacando aspectos de atenção, zelo e delicadeza em sua essência ou em suas ações. Quando usado como adjetivo, o cuidado reflete a forma como uma ação é realizada ou como um estado ou atributo é percebido, indicando minúcia, precaução ou afeto. Por exemplo, ao dizer que uma obra é feita de maneira cuidadosa, ou que uma pessoa é cuidadosa, enfatiza-se a presença de uma atitude meticulosa e atenta, revelando um esforço consciente para evitar erros, negligências ou danos. Nesse contexto, o cuidado como adjetivo não é apenas uma qualidade passiva, mas uma característica ativa que permeia comportamentos e intenções. O cuidado adjetivo também denota uma suavidade ou ternura que envolve o que é feito ou sentido. Por exemplo, uma atitude cuidadosa pode expressar empatia e consideração, enquanto um olhar cuidadoso sugere atenção plena ao outro ou ao ambiente. Ele simboliza um manto de proteção que adorna a relação com o mundo e com as pessoas.

          Assim, como adjetivo, o cuidado é um elemento qualificativo que agrega valor emocional, ético e prático às ações e às interações, destacando o compromisso com a qualidade e o respeito em cada detalhe. Necessariamente, é relevante considerar o cuidado como elemento essencial para a condição humana. Segundo Heidegger, em Ser e Tempo (1927), o cuidado (Sorge) é definido como a estrutura fundamental da existência humana. Para o filósofo, o cuidado é a forma como o ser humano se relaciona com o mundo, conferindo sentido à sua experiência e às suas ações. Ademais, o cuidado possui um caráter transformador, que pode ser associado às ideias de Leonardo Boff em Saber Cuidar (1999). O autor explora o cuidado como um ato de construção e preservação, essencial tanto para o desenvolvimento humano quanto para a sustentabilidade do planeta. Segundo Boff (1999, p. 17), “o cuidado é mais que uma virtude; é uma dimensão fundamental do ser”.

          Outro aspecto relevante é a polaridade entre o cuidado enquanto substantivo e adjetivo. Como substantivo, o cuidado constitui a base para a ação humana; como adjetivo, é um atributo que amplia, diversifica e qualifica as interações. Nesse sentido, o cuidado pode ser entendido como o que Maria Helena Chauí (2000) denomina de prática ontológica, que não apenas faz parte do ser humano, mas o define em sua essência.

          Conclui-se que o cuidado transcende as dimensões literárias e filosóficas, consolidando-se como princípio existencial e essencial para a construção de uma vivência significativa e solidária, jamais solitária. Suas manifestações, sejam elas concretas ou simbólicas, ecoam nas mais diversas áreas do saber, destacando sua relevância para o entendimento da condição humana.

Eis o poema:

Cuidado, o Substantivo e Adjetivo  (Everton Nery)

Cuidado, tu és existência delicada,  

Que molda o barro da vida,  

Com suas mãos ternas e suaves,  

Desenha sonhos em cada ferida.

 

Na margem do rio do tempo,  

Você surge, sutil como a brisa,  

Dando forma ao que é inerte,  

Tornando a existência uma precisa.

 

Oh, Cuidado, teu nome ecoa,  

Nas veias da Terra que te abraça,  

Em cada gesto de carinho,  

A vida floresce e não se esgarça.

 

O céu te deu o espírito vibrante,  

A Terra, o corpo que acolhe,  

Mas é você quem dá sentido,  

Ao que vive e ao que é vestido ou despido.

 

Moldador de esperanças e medos,  

Teu toque transforma o comum,  

Em cada ato de amor e atenção,  

O barro se torna um coração.

 

Cuidado é a luz que guia,  

A voz suave nas noites frias,  

Um laço entre almas errantes,  

Um porto seguro em dias distantes.

 

E assim seguimos na jornada,  

Com você como fiel companheiro,  

Na dança da vida entrelaçada,  

Cuidado é o amor verdadeiro.

 

Cuidado, substantivo que abraça,  

É ternura que envolve o ser,  

Um gesto suave que nunca se passa,  

A mão que acalma, o olhar a entender.  

 

Cuidado, adjetivo que adorna a essência,  

É zelo que em cada ato se revela,  

Um manto de amor, uma delicada presença,  

Na trama da vida, é luz que faz diferença!

Referências

BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 1999.

CHAUÍ, Maria Helena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Marcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1927.

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Joseval Há 22 horas Salvador BaMaravilha professor Everton!! Brilhante poema e belíssima resposta.
EdilmaHá 23 horas Guanambi Bahia Excelente!
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